sábado, março 04, 2023

Manifesto do Homem Primitivo

Quanto aos instrumentos de que dispõe o «homem primitivo», seria imprudente ver na sua rusticidade a incapacidade deste para conceber meios de acção de envergadura contra a natureza. Tudo na «cultura primitiva» traduz no homem mais a preocupação, não de destruir e de transformar a natureza, mas, pelo contrário, de a restaurar na sua plenitude primordial e de nela se integrar profundamente. Esta é sem qualquer dúvida a razão por que se encontra na aldeia «primitiva» elemento culturais que são cem vezes inferiores ao pensamento de uma criança. Nada aqui foi construído para durar uma eternidade: todos os anos, pelo bom tempo, as cabanas são cobertas com novos tectos de colmo. Os caminhos desaparecem também sob a vegetação alta do Inverno para reaparecerem na estação seca. Os campos cultivados mal se distinguem do resto da natureza; abandonados os terrenos de pousio, rápida e totalmente se confundem com o mato.

Fodé Diawara, “Manifesto do Homem Primitivo”

domingo, fevereiro 12, 2023

mudos & surdos - das línguas estranhas

 


Quando não se entendem as línguas estranhas, as que falam são mudos, e os que ouvem são surdos (I, 309)

“Sermões e Discursos Vários – Índices das Coisas Mais Notáveis e dos Lugares Bíblicos, Índice Universal” Padre António Vieira

sexta-feira, janeiro 20, 2023

carta de Castelao a Teixeira de Pascoaes, 1934

O Miño non é unha fronteira e temos que voar, com os páxaros, por riba dos carabineiros e dos guardiñas.

carta de Castelao a Teixeira de Pascoaes, 1934



sábado, janeiro 01, 2022

dos aeroportos

O comissário teve tempo para inspeccionar Schiphol e teria ainda mais tempo para inspeccionar Orly, ele que detestava aeroportos. Não tinham humanidade nenhuma. As estações de caminho de ferro eram civilizadas; os aeroportos, não. O ser humano era arrebanhado e importunado, carimbado e rotulado, esprimido através dos subterrâneos como pasta de dentes através de uma bisnaga e, finalmente, encapsulado num abjecto e caríssimo tùnelzinho, a fim de um computador calcular, até ao último miligrama, o lucro a obter. A falta de dignidade era tanta que um indivíduo até aceitaria as condições de um matadouro mais humano e suave, onde lhe dessem um copinho de gin antes de o submeterem à eutanásia. O pior de tudo era a ficção de que os aeroportos se esforçavam por proporcionar os requintes de luxo a quem os utilizava.

Os aeroportos davam-lhe sempre o desejo de estar em Cuba.

Nicolas Freeling, “Herança de Um Inferno”



domingo, dezembro 26, 2021

da Peste - respirar é viver!

 


Assim lhe aconteceu a São Roque: enfermou, e enfermou de peste. E entre as misérias, que fazem tão terrível, tão temido, e tão aborrecido o mal de peste, duas são as que a mim me causam maior horror. A primeira, ser a peste um mal, que do elemento da vida nos faz o instrumento da morte. O elemento da vida é o ar, com que respiramos, a peste é esse mesmo ar corrupto, e inficionado: e que haja um homem de beber o veneno na respiração? Que a respiração, que é o elemento, e alimento da vida, se lhe haja de converter em instrumento da morte? Grande rigor! Expirar é morrer, respirar é viver: e que morra um homem expirando, isso é morte; mas morrer respirando? Que me mate o que me havia de dar vida? Bravo tormento!

Padre António Vieira, “Sermão de São Roque” – Pregado na Capela Real, ano de 1649, havendo Peste no Reino do Algarve

terça-feira, junho 29, 2021

Arte de Amar em Ovídio


Acredita no que te digo: não deve apressar-se o prazer de Vénus,

mas sim, discretamente, fazer por retardá-lo e demorá-lo.

Quando descobrires o ponto onde a mulher se excita ao ser tocada,

não seja o pudor a impedir-te de o tocar;

verás os seus olhos a brilhar de fogo cintilante,

como, tantas vezes, o sol reflecte a luz na superfície da água;

far-se-ão ouvir queixumes, far-se-á ouvir um encantador sussurro

e doces gemidos e palavras apropriadas ao prazer.

Mas não deixes para trás a tua parceira, desfraldando mais largas velas,

nem seja mais rápido o ritmo dela que o teu;

avançai para a meta ao mesmo tempo, então, será pleno o prazer,

quando, a par e par, fazerem, vencidos, a mulher e o homem.

Ovídio, “Arte de Amar”

segunda-feira, junho 21, 2021

Cabo Verde não é África!

 

Quando chega no aviom à África que lhe venderam na passagem aérea, tam cara, o primeiro impulso do européu é pedir a folha de reclamaçom: “Desculpe mas isto aqui nom é África. Eu tirei um bilhete para África. Pode-me dizer para onde fica?”. No bar da coqueta terminal aérea pode ver o Sumol, o Português Suave, os ovos moles de Tentúgal, a cerveja Sagres, e no ecrãn da TV, o jogo do Sporting contra o Porto. Tudo o que tem rótulo apela-nos com familiaridade e provoca o espelhismo de que chegamos a unha jangada na que se prolonga Europa. É a segunda máscara de Cabo Verde. A de que nom é um lugar novo, a de que te tivérom numha caixa troupeleando unhas horas para simular a viagem e estás no mesmo lugar, no velho mundo. A beber cerveja e a comer tremoços.

Quico Cadaval, prefácio de “O Resto é Céu” de silvia penas

sexta-feira, fevereiro 12, 2021

Portugal e Galiza, Castelao

Até há pouco tempo as relações de Portugal e a Galiza reduziam-se a visitas académicas de tunos e professores. A Universidade castelhana que o estado Hespanhol sustenta em Santiago de Compostela, bem podia entender-se com a Universidade de Coimbra - «esse terrível foco desnacionalizador, por cruel ironia situado no meio da mais estranha paisagem quinhentista» [Teixeira de Pascoaes, “O Espírito Lusitano”] –, sem comprometerem o artifício cultural e político em que vivíamos. Os visitantes universitários de além-Minho esmeravam-se em falar-nos num castelhano risível, e jamais deixaram um só livro em português posto à venda nas nossas livrarias. Consideravam natural que os Galegos só pudéssemos comprar obras portuguesas traduzidas infamemente para castelhano, porque não sabiam que podíamos lê-las no idioma de origem. Lembro-me que no ano de 1906 fui eu a Coimbra numa Tuna académica e os estudantes lusitanos assanhavam-se quando eu lhes falava em galego, como se com isso lhes lembrasse qualquer origem bastarda. Não lhes importava que juntos connosco, numa unidade superior às contingências políticas, tivéssemos criado monumentos literários que são marcos da civilização ocidental, numa língua que eles depuraram e agigantaram, mas que nós soubemos manter em pristina enxebreza e no estado eminentemente popular daquela literatura. Para eles a Galiza estava no Norte, embrulhada em nevoeiros e em chuvas... e os estudantes portugueses eram doidos pelas zarzuelas madrilenas e sonhavam com amores sevilhanos... E contai com que na altura primavam em Coimbra os ideais republicanos.

Castelao, “Sempre em Galiza”

segunda-feira, janeiro 25, 2021

Diferença entre pintura e escultura

 


Nunca pintou?

Que horror!

Horror porquê?

A grande diferença entre pintura e escultura é que a primeira é uma falsificação da realidade e a segunda a busca da realidade. Enquanto a pintura falseia uma imagem, a escultura recria uma nova realidade. De tal modo que se todo o criador é um rival de Deus Nosso Senhor, o escultor ainda o é mais. Por isso se escreve no Velho Testamento: não farás imagens talhadas em pedra...

João Cutileiro, entrevista a José Carlos de Vasconcelos, JL 402, de 20 de Março de 1990

sábado, janeiro 16, 2021

Exemplo da Natureza

(...) um exemplo da natureza (de que também Deus é o Autor) excelentemente notado por Santo Isidoro Pelusiota. “Não vedes” (diz ele) “o ordem, a harmonia, e o compasso, com que a natureza distribui os tempos aos frutos da terra, e os mesmos frutos aos tempos? O Janeiro, e o Fevereiro, deu-os às sementeiras, e às raízes; o Março, e o Abril às flores; o Maio , e o Junho aos frutos temporãos; o Julho, e o Agosto à sega, e ao trigo; o Setembro, e o Outubro às vindimas; e o Novembro, e o Dezembro aos frutos serôdios, e mais duros. E porque repartiu assim a natureza os meses, uns frios, outros temperados, outros calmosos, e não quis que os frutos crescessem, amadurecessem, e viessem sazonados, todos juntamente?” Nam si cuncta confestim ad vigorem suum pervenirent, profecto agricolae industria ab temporis brevitatem in angustias veniret. [“Já que, se tudo amadurecesse ao mesmo tempo, decerto o trabalho do lavrador, pela estreiteza do tempo, ficaria em grande aperto”.] “A razão é” (responde o Santo) “porque se os frutos viessem todos juntos, afogar-se-ia a indústria dos lavradores, e impedindo-se uns aos outros, seria maior a perda, que a colheita”.

Padre António Vieira, “Com o Santíssimo Sacramento Exposto” [“Sermões do Rosário, Maria Rosa Mística I”]



sexta-feira, dezembro 18, 2020

Vila Real - da destruição...

Vila Real é uma cidade construída sobre um promontório entre os rios Corgo e Cabril, com a presença das serras do Marão e do Alvão bem visíveis no seu horizonte a oeste. A cidade lidou mal com a voracidade dos tempos pós revolução de abril de 1974. O seu centro histórico foi praticamente todo destruído, restando apenas alguns edifícios religiosos. A cidade medieval desapareceu, mas mantém-se a singularidade geográfica do lugar.

Duarte Belo e João Abreu, “Viagem Maior” (dezembro de 2020)

terça-feira, março 24, 2020

Cão, animal de estimação...

Era o seu animal de estimação. E, na verdade, como não ter estima por quem obedece imediatamente aos nossos gritos e se curva com presteza às nossas repreensões e ameaças? Como não ter amor por quem podemos amarrar pelo pescoço e prender numa coleira e arrastar onde o quisermos, à força de puxões e pancadas educativas? Alguém que podemos trancar num minúsculo banheiro durante a noite e obrigar que fique em silêncio. Como não trazer no coração uma criatura a quem podemos, caso isso nos incomode, cortar uma parte do rabo e das orelhas, injectar hormônios, castrar, secar os testículos, ou retirar o ovário ou o útero inteiro, e com toda a razão nos julgarmos, por isso mesmo, merecedores de elogios e de gratidão por toda a vida? Como não prezar como um verdadeiro ser humano alguém que depois de tudo isso nos adora cegamente, geme de alegria atrás da porta quando ouve nossa chave tilintar e corre contente para lamber nossos pés quando chegamos da rua?
Rubens Figueiredo, “Barco a Seco” 

sábado, março 21, 2020

Sermão do Bom Ladrão


Suponho finalmente que os ladrões, de que falo, não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza, e vileza de sua fortuna condenou a este género de vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado, como diz Salomão: Non grandi est culpa, cum quis furatus fuerit: farutur enim ut esurientem impleat animam | Não é grande a culpa quando o ladrão furta para se saciar [Pr 6, 30]. O ladrão que furta para comer não vai, nem leva ao Inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre, e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome, e do mesmo predicamento distingue muito bem São Basílio Magno: Non est intelligendum fures esse solum bursarrum incisores, vel latrocinantes in balneis; sed et qui duces legionum statuti, vel qui commisso sibi regimine civitatum, aut gentium, hoc quidem furtim tollunt, hoc vero vi, et publice exigunt. “Não são só ladrões”, diz o Santo, “os que cortam bolsas, ou espreitam os que vão banhar, para lhe colher a roupa; os ladrões, que mais própria, e dignamente merecem este título são aqueles a quem os Reis encomendam os exércitos, e legiões, ou o governo das Províncias, ou a administração das Cidades, as quais já com manha, já com força roubam, e despojam os povos”. Outros ladrões roubam um homem, estes roubam Cidades, e Reinos; os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, sem perigo; os outros, se furtam, são enforcados; estes furtam, e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma tropa de varas, e Ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: “Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos”. Ditosa Grécia, que tinha tal Pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas. Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um Cônsul, ou Ditador por ter roubado uma Província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De um chamado Seronato disse com discreta contraposição Sidónio Apolinar: Non cessat simul furta, vel punire, vel facere. “Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer”. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só.
Padre António Vieira, “Sermão do Bom Ladrão”, ano 1655

quarta-feira, março 18, 2020

São Vicente por Germano Almeida


E acabou por ensaiar uma análise cuja tese principal era a seguinte: São Vicente é uma ilha de povoamento recente, feito com recurso aos naturais das outras ilhas que as secas, a falta de trabalho e outras misérias forçaram à migração. Ora essas criaturas abandonam ilhas de fortes tradições próprias e já com enraizadas formas de estar no mundo, para de repente se lançarem num espaço não só agreste como também relativamente hostil e onde, para sobreviver, são obrigadas a miscigenar diferentes culturas regionais com o consequente prejuízo de nenhuma delas ser suficientemente maioritária para se impor. E é esta circunstância, mais a ausência de uma ancestral ligação a esta terra, que faz do homem de São Vicente um ser leviano e fluido, sem a salutar verticalidade e firmeza do natural de Santo Antão ou Santiago onde os valores sociais regionais se mantiveram intangíveis. E é sem dúvida interessante verificar a perda da robustez, quer física, quer espiritual, desses povos específicos quando postos em contacto estreito com São Vicente. Porque de indivíduos calados, pensados, cuidadosos no uso das palavras, transformam-se em palavrosos fala-baratos em constante necessidade de afirmação pessoal. Mas como se tudo isso não fosse suficiente, a população que habita esta ilha viu-se, logo no início do processo da formação daquilo que poderia vir a ser uma sui generis cultura regional, submetida e influenciada por uma outra cultura, a inglesa, não só poderosa como rígida e dominadora e que por isso mesmo passou a ser ponto de referência essencial para todo o residente desta ilha, sem prejuízo, bem entendido, da constante passagem de outras formas culturais estrangeiras menos notórias mas nem por isso menos marcantes. E a consequência de tudo isto é a verdade do homem de São Vicente ser o mais inautêntico de Cabo Verde.
Germano Almeida, “O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo”


quarta-feira, janeiro 29, 2020

cartas a Miguel Torga


Caro Autor. Para acudir a muitos alunos do curso secundário, e a bem do malfadado ensino do português, peço-lhe o grande favor de duas linhas nas quais, em letra bem redonda, afirme a condição humana da Madalena dos seus Bichos, negando que ela seja uma cabra ou uma burra, como pretendem umas senhoras mestras de tão impenetrável ignorância, que só se darão por vencidas se (cito) ‘o próprio Torga disser que ela é mulher’.
curto bilhete de Eduardo Jorge Frias Soeiro, professor, Portimão – “Cartas para Miguel Torga” organização de Carlos Mendes de Sousa

domingo, janeiro 26, 2020

Lisboa, por Miguel de Cervantes


- Alvíssaras, senhores, alvíssaras peço e alvíssaras mereço! Terra! Terra! Embora melhor eu deveria dizer: céu!, céu!, porque sem dúvida estamos no sítio da famosa Lisboa.
(...) Aqui, nesta cidade, verás como são carrascos da doença muitos hospitais que a destroem, e o que neles perde a vida, envolto na eficácia de infinitas indulgências, ganha a do céu. Aqui o amor e a honestidade dão as mãos, e passeiam juntos, a cortesia não deixa que dela se aproxime a arrogância, e a bravura não consente que se aproxime dela a cobardia. Todos os seus moradores são agradáveis, são corteses, são generosos e são enamorados, porque são inteligentes. A cidade é a maior da Europa e a de maiores negócios; nela se descarregam as riquezas do Oriente, que daí são repartidas pelo universo; o seu porto é espaçoso, não só de naves que se possam reduzir a um número, mas de selvas móveis de árvores que os das naves formam; a formosura das mulheres admira e enamora; a galhardia dos homens causa espanto, como eles dizem; finalmente, esta é a terra que dá ao céu um santo e abundantíssimo tributo.
Miguel de Cervantes, “Os Trabalhos de Persiles e Sigismunda” (1580-1615)

domingo, novembro 03, 2019

Terrível palavra é um Non



Terrível palavra é um Non. Não tem direito, nem avesso: por qualquer lado que o tomeis, sempre soa, e diz o mesmo. Lede-o do princípio para o fim, ou do fim para o princípio, sempre é Non. Quando a vara de Moisés se converteu naquela serpente tão feroz, que fugia dela, porque o não mordesse; disse-lhe Deus que a tomasse ao revés, e logo perdeu a figura, a ferocidade, e a peçonha. O Non não é assim: por qualquer parte que o tomeis, sempre é serpente, sempre morde, sempre fere, sempre leva o veneno consigo. Mata a esperança, que é o último remédio, que deixou a natureza a todos os males. Não há corretivo, que o modere, nem arte, que o abrande, nem lisonja, que o adoce. Por mais que confeiteis um Não, sempre amarga; por mais que o enfeiteis, sempre é feio; por mais que o doureis, sempre é ferro. Em nenhuma solfa o podeis pôr, que não seja mal soante, áspero, e duro.
Padre António Vieira, “Sermão da Terceira Quarta-Feira da Quaresma” – Pregado na Capela Real, Ano de 1670

domingo, março 24, 2019

da construção...

Alguém que se preze e esteja no uso atilado das suas faculdades mentais, andará porventura aos bordos pelas ruas da cidade, sairá de casa em trajes menores para ir tratar dos seus negócios, dirigirá insultos às pessoas desconhecidas por quem for passando? Esperemos que não. E, no entanto, há casas que parecem empenhadas em nos mostrar o destrambelho das suas disposições; fachadas que agridem os nossos olhos com o disparate das formas e das cores; macaquices à laia de ornamentações; janelas que são esgares; portas de expressão tão alvar que, quando abertas, só esperamos que delas saia alguma asneira... e tudo isto se tolera, e ninguém vai preso – nem donos, nem construtores. Bem sabemos que a tolice e a ignorância são úteis até certo ponto; por elas as virtudes opostas melhor se realçam; o mal está em que as obras que deviam exercer influência educativa no sentimento do público, sejam entregues ao livre arbítrio de tais espíritos de negação!
Raul Lino, “Casas Portuguesas – alguns apontamento sobre o arquitectar das casas simples” (1933)


domingo, fevereiro 10, 2019

caracterizadamente português


- É o Sr. Manuel Tomé, o traço de união entre Democracia e o Mosteiro.
Atentando nele e ouvindo-lhe, por momentos, a filosofia alinhavada nas brochuras baratas, vi que era um arremedo de alguns enchedores de gazetas que sacrificam à terceira refeição o banho diário.
Em dez minutos discorreu sobre política, economia, moral, vida moral.
(...) o tipo Manuel Tomé é caracterizadamente português. Veja o seu desdobramento no parlamento, no comício, na escola, na crónica literária... em toda a parte. É a democracia soez pintada de cinismo, a pompear requintes tirocinados em sociedades de ínfimos.
Visconde de Vila-Moura, “Nova Safo”

terça-feira, janeiro 01, 2019

sobre a Arte de escrever

Foram precisos anos de luta, de trabalho duro e de pesquisa, para aprender a fazer um só e simples gesto, e sei o suficiente sobre a Arte de escrever para me aperceber de que necessitaria, de novo, de outros tantos anos de esforço tenaz e concentrado para escrever uma só frase simples e bela. Quantas vezes afirmei que, embora um homem possa aventurar-se por terras do Equador e travar recontros tremendos com tigres e leões, se porventura tentar narrá-los por escrito, não conseguirá fazê-lo, enquanto um outro, que nunca saiu da varanda de sua casa, é capaz de descrever a matança de tigres na selva e fazê-lo de tal modo que os seus leitores não duvidem que na verdade ele andou por esses sítio e com ele partilhem os seus medos e angústias, sintam o cheiro dos leões e ouçam o temeroso aproximar da cobra cascavel. Nada parece ter existência real senão na imaginação e todas as coisas maravilhosas que me aconteceram e vivi podem vir a perder o seu sabor pela simples razão de eu não possuir a pena de um Cervantes ou mesmo de um Casanova.
Isadora Ducan, “A Minha Vida”

sábado, novembro 24, 2018

... porque todos são brancos!

A grande sem-razão desta injustiça declarou Salomão em nome alheio com uma demonstração muito natural. Introduz a Etiopisa, mulher de Moisés, que era preta, falando com as Senhoras de Jerusalém, que era brancas, e por isso a desprezavam, e diz assim: Filiae Jerusalem, nolite considerare quod fusca sim, quia decoloravit me Sol [Ct 1, 4-5 – “Filhas de Jerusalém (...), não estranheis eu ser morena, foi o sol que me colorou”]: “Se me desestimais, porque sois brancas, e eu preta, não considereis a cor, considerai a causa: considerai que a causa desta cor é o Sol, e logo vereis quão inconsideradamente julgais”. As Nações, umas são mais brancas, outras mais pretas, porque umas estão mais vizinhas, outras mais remotas do Sol. E pode haver maior inconsideração do entendimento, nem maior erro do juízo entre homens, e homens, que cuidar eu que hei de ser vosso Senhor, porque nasci mais longe do Sol, e que vós haveis de ser meu escravo, porque nasceste mais perto?
 Dos Magos, que hoje vieram ao Presépio, dois eram brancos, e um preto, como diz a tradição: e seria justo que mandasse Cristo que Gaspar e Baltasar, por serem brancos, tornassem livres para o Oriente, e Belchior, porque era pretinho, ficasse em Belém por escravo, ainda que fosse de São José? Bem o poderá fazer Cristo, que é Senhor dos Senhores: mas quis-nos ensinar que os homens de qualquer cor todos são iguais por natureza, e mais ainda por Fé, se creem, e adoram a Cristo, como o Magos. Notável coisa é que sendo os Magos Reis, e de diferentes cores, nem uma, nem outra coisas dissesse o Evangelista! Se todos eram Reis, porque não diz que o terceiro era preto? Porque todos vieram adorar a Cristo, e todos se fizeram Cristãos. E entre Cristão, e Cristão não diferença de nobreza, nem diferença de cor. Não há diferença de nobreza, porque todos são filhos de Deus, não há diferença de cor, porque todos são brancos. Essa é a virtude da água do Batismo. Um Etíope se se lava nas águas do Zaire, fica limpo; mas não fica branco: porém na água do Batismo sim, uma coisa, e outra: Asperges me hyssopo, et mundabor [“Aspergir-me-ás com o hissope e ficarei limpo”]: ei-lo aí limpo; Lavabis me, et super nivem dealbador [Sl 50, 9 – “Lavai-me, e ficarei mais branco que a neve”]: ei-lo aí branco. Mas é tão pouca a razão, e tão pouca a Fé daqueles inimigos dos Índios, que depois de nós os fazermos brancos pelo Batismo, eles os querem fazer escravos por negros.
Padre António Vieira, “Sermão da Epifania” – Na Capela Real, Ano 1662


A biblioteca


A biblioteca
O meu pai tornou-se a biblioteca. Será um sítio perigoso de penetrar. No seu tempo, foi o proeminente dramaturgo e académico. As suas memórias de infância da biblioteca, porém, revestiram-se de grande interesse para a Asphodel, e ele tem trabalhado arduamente na construção desta nova biblioteca desde que entrou para aqui. A biblioteca da sua infância continua a existir na pequena cidade onde cresceu, uma antiga e pitoresca biblioteca de província feita de grés vermelho com aldrabas e maçanetas de bronze nas portas e uma grande mesa de carvalho escurecido, onde se faz a requisição e a devolução dos livros. Ele recordava-se de cada centímetro; mais: ele recordava-se de cada biblioteca onde tinha estudado em jovem, e depois mais velho, quando se tornou um tipo de pessoa que usava exclusivamente as bibliotecas e comprava livros verdadeiros, dos antigos, feitos de papel, letra impressa, cola. Conhecia-lhes o cheiro e o peso, a textura das suas capas. Os livros que ele não conhecia era capaz de imaginar com pormenores convincentes. Todos os livros do mundo foram há muito tempo trazidos para o nosso universo por via de digitalização automática, pelo que só é preciso o pensamento adequado, um pensamento operativo, para preencher aquelas cifras tangíveis, mas vazias, de livros com palavras. É isso então que o meu pai faz. Tem a biblioteca na cabeça. Está a enchê-la com um número infinito de livros em que se pode entrar, esconder-se, de que pode fazer parte sempre que queira. Assassiná-lo naquela biblioteca será talvez impossível, mas é preciso. Eu tenho de espantá-lo e matá-lo. Torná-lo completamente vulnerável e aberto. A sua mente deve estar completamente relaxada, de tal maneira que não consiga aparar o golpe quando eu atacar. E o golpe deve ser sério e fatal. Não pode ser apagado aos poucos, tem de ser de uma vez. Um golpe. Instantâneo. Tem de reverter. Rebentar. Desintegrar-se. Apagar-se.
Louise Erdrich, “Domínio” [Granta em Língua Portuguesa | 2]

domingo, novembro 11, 2018

Trás-os-Montes, o Nordeste

Devido talvez à longa ausência, quando cheguei surpreendeu-me, quase diria me assaltou, o cheiro da terra transmontana, o odor que se me deve ter entranhado à nascença e agora aspiro com a satisfação de viciado a quem faltou a droga.
Há aí retalhos de memória e alguma fantasia, pois desapareceram os montes de estrume a fumegar, não se vêem cagalhetas nem bostas, nenhum forno coze pão. Todavia, sem que os chame, esses cheiros antigos vêm de mistura com os de resina e terra seca, dos eucaliptos, das encostas que são mares de esteva, giesta, urze e rosmaninho.
Para mim continua no ar o relento de terra lavrada, do fumo acre de lenha a arder, mosto, figos, maçãs podres, bedum, o calor cheiroso das vinhas ao fim da tarde, o das pedras torradas pelo sol de Agosto.
Ontem, ao rever o lugarejo onde nasci, desabitado há vidas e que dentro em pouco se afundará na albufeira da barragem do Sabor, mais do que serem vivas as recordações, todas me chegaram acompanhadas de cheiros: o de pólvora na roupa de meu Pai, do soro de leite nas mãos da Felisbela a fazer queijo, do sabão de potassa, o das chouriças a defumar.
Há muito que tudo ali é abandono, fim, em parte nenhuma vi, nem poderia ver, candeeiros de petróleo ou lampiões de azeite, botas ensebadas, feno, a palha húmida, a urze repisada do mijo das bestas para fazer estrume, mas a cada porta de casebre, nos muros arruinados, no que ainda está de pé do que foi a nossa casa, por toda a parte me acompanhou, penetrante, a memória desses cheiros, como se por instantes fosse devolvida a parte de mim que há muito cientemente descartei.
J. Rentes de Carvalho, “O Meças”


quinta-feira, novembro 01, 2018

Os rios de Portugal: barragens!



Os rios em Portugal eram belos e selvagens, um exemplo para a juventude, corriam livres e esbanjavam tudo na Primavera, para desaparecerem entre as pedras no Verão. Até que saiu um decreto para conter o esbanjamento dos rios nacionais – Temos de impor um certo grau de civilização aos rios, um rio que queira circular no território europeu terá de cumprir as regras da boa gestão dos recursos. Vamos adoptar o sistema: um rio – duas barragens. Será a marca da democracia em todos os rios, até nos mais recônditos vales construiremos as infra-estruturas a que todos os rios têm direito num país civilizado. Os nossos rios ordenados serão um grande motivo de orgulho.
Tiago Patrício, “Checoslováquia”

segunda-feira, julho 23, 2018

da Universidade

12 de Março [1919] – Depois destes cinco anos passados na Universidade, parece-me o que se costuma dizer rotineiramente: que se perde o tempo e que ao sair é quando se tem de começar a trabalhar e, sobretudo, quando se deve esquecer o que se aprendeu, que é absolutamente secundário.
No meu entender, o pior efeito do estabelecimento é a falsificação que produz na sensibilidade, na inteligência e no carácter. Tende a fazer ver as coisas não tal como realmente são, mas através de uma chapa sobreposta. Não é o esforço para passar do simples ao complexo – como a vida exige – para chegar a uma certa visão humana quintessenciada. É um esforço para simplificar através da armadilha sistemática. O estabelecimento faz ver as coisas em ponto pequeno, com miopia, favorece o pensamento, o truque, a astúcia, a habilidade, a tendência a converter o atrabiliário em norma de vida. Na Universidade, saber conta muito pouco: o principal é aprovar. Passei cinco anos da minha vida numa faculdade de Direito: nunca ouvi falar, nem por sombras, de Justiça. Nunca ouvi a própria palavra ser pronunciada. Teria estado provavelmente deslocada num ambiente que pretende criar malandros, mais do que pessoas de um certo equilíbrio humano. Assim, o estabelecimento docente dá armas fortes aos fracos e aleijados morais, aos pequenos ambiciosos, às moscas mortas desenfreadas, aos fanáticos, aos pedantes. Aprende-se aí todas as artes da dissimulação e da artimanha, da adulação e da habilidade. Nunca se luta com nobreza e clareza. A Universidade abafa e corrompe os temperamentos fortes.
Josep Pla, “O Caderno Cinzento”

domingo, julho 22, 2018

Diário

5 de Setembro [1908] – Pergunto-me frequentemente se este diário é sincero, ou seja, se é um documento absolutamente íntimo.
A primeira questão que se coloca é esta: é possível a expressão da intimidade? Quero dizer a expressão clara, coerente, inteligível, da intimidade. A intimidade pura, bem discernida, deve ser a espontaneidade pura, ou seja, uma segregação visceral e desconexa. Se alguém dispusesse de uma linguagem e de um léxico eficaz para representar esta segregação, não haveria problema. Mas a verdade é que não existe nem um estilo adequado à sinceridade nem um léxico eficiente. Mas, supondo ainda por um momento que a intimidade se pudesse expressar, quem a entenderia? Quem poderia compreender? Se não fosse única, particularista, pessoalíssima, absolutamente primigénia, que aspecto teria? Como se poderia imaginar a sua presença? Quando não podemos esclarecer a nebulosa interna, habitualmente dizemos: sei do que estou a falar... Os bêbados dizem o mesmo. Suspeito que as crianças, quando não conseguem fazer-se entender, pensam o mesmo. A minha ideia, então, é que a intimidade é inexprimível por falta de instrumentos de expressão, que a sua projecção exterior é praticamente informulável. Pensemos apenas na enorme força de deformação e de falsificação que tem o estilo tradicional, a ortografia e a sintaxe habitual, em toda a tentativa de querer expressar o pensamento de aparência mais simples, na pretensão de descrever o objecto mais insignificante.
E, como se isto não fosse suficiente, há todos os monstros invencíveis: a vaidade, o tartufismo, a educação, o egoísmo, o convencionalismo, a inveja, o ressentimento, a humilhação, a influência do dinheiro ou a falta dele, a impotência... ou seja, todo o detrito de paixões e de sentimentos que alguém arrasta desde que se levanta até que se deita. Metidos neste jogo de forças obscuras mas de grande peso, as contradições íntimas são permanentes. Por exemplo: tenho tendência em público, ou quando escrevo, a combater o sentimentalismo por ser pornográfico e anti-higiénico, mas o certo é que pessoalmente sou uma espécie de vitelo sentimental evanescente. Quando estou sozinho, às vezes rio-me – ou às vezes cai-me uma lágrima desprovida de qualquer justificação racional, contrária a todas as exigências da razão que defendo perante as pessoas. Aconteceu-me entrar numa igreja e começa a chorar copiosamente, e isso mesmo me aconteceu a ler um livro, como espectador num teatro ou folheando um jornal. Folheando um jornal, não é literalmente grotesco? É um facto certo. Um outro aspecto: tenho uma certa fama de homem forte e suponho – para dizê-lo como Stendhal – de tête brulée. Mas a realidade é muito diferente. Perante muitas coisas, sou de uma debilidade ridícula. Uma gota de sangue, a dor física, a presença de um morto, a observação de uma injustiça, a desgraça de um amigo, a visão de uns olhos tristes, submergem-me num estado de debilidade tão excitante e dolorosa que a sinto de uma maneira física. Na realidade, só sou forte para aparentar – quando estou em público – que tenho o sentido do ridículo desperto.
O homem poderia ser sincero se fosse sempre igual a si próprio: enquanto for em público – falo de um homem normal – tão diferente como é ao encontrar-se consigo mesmo, enquanto não houver entre estes dois seres vivos que levamos dentro uma solução de continuidade, visível e permanente, a expressão da sinceridade é impossível.
Então, o que se deve pensar da intimidade? Et cetera.
Josep Pla, “O Caderno Cinzento”

sábado, julho 21, 2018

o mar


8 de Agosto [1908] – O mar. Estas ondas verdes, azuis, brancas, que monotonamente vemos passar fazem sobre o espírito um trabalho de lima, despersonalizando-nos, podam-nos o relevo da própria presença humana. Fica-se embasbacado, fascinado, dominado. Talvez isso explique que a única posição do homem perante o mar tenha sido de simples contemplação.
O mar inumerável, sempre mutável, esgota a nossa fantasia. E quando sentimos esse esgotamento encontramos o mar idêntico, liso, monótono, igual. Através do primeiro momento, o mar domina-nos e dá-nos prazer. Através do segundo, angustia-nos e provoca-nos um mal-estar impreciso, vago.
Para quebrar este jogo teríamos que encontrar a palavra justa e compreensiva para o mar... mas assim que pensamos que a temos, escapa-se-nos como se fosse uma rajada de vento ou o caracol voluptuoso e fugaz de uma onda.
Josep Pla, “O Caderno Cinzento”



sexta-feira, julho 20, 2018

da poesia nos olhares


16 de Abril [1908] – Às vezes passeio pelas ruas com o objectivo exclusivo de olhar para a cara dos homens e das mulheres que passam. A cara dos homens e das mulheres que passaram dos trinta anos, que coisa tão impressionante! Que concentração de mistérios minúsculos e obscuros, à medida do homem; de tristeza venenosa e impotente, de ilusões cadavéricas arrastadas durante anos e anos, de cortesia momentânea e automática; de vaidade secreta e diabólica; de abatimento e resignação perante o Grande Animal da natureza e da vida!
Há dias em que invento qualquer pretexto para falar com as pessoas que vou encontrando. Olho-as nos olhos. É um pouco difícil. É a última coisa que as pessoas deixam ver. Estremeço ao notar a escassa quantidade de gente que conserva no olhar algum rasto de ilusão e de poesia – da ilusão e da poesia dos dezassete anos. Da maioria dos olhos apagou-se de todo o brilho pelas coisas abstractas e engraçadas, gratuitas, fascinantes, incertas, apaixonantes. Os olhares são duros ou mórbidos ou falsos, mas totalmente arrasados. São olhares puramente mecânicos, desprovidos de surpresa, de aventura, de imponderável.
Josep Pla, “O Caderno Cinzento”

terça-feira, junho 19, 2018

da Poesia

Não é fácil nos dias de hoje, fazer poesia sentimental sem banalidade. Quase tudo o que havia a dizer já está dito. E o que é pior, dito e vencido. Entre o que se diz e a maneira por que se o faz, o verso foi resvalando para a técnica, e nela firmou seus domínios. A arte de escrever tem superado a mensagem, e a estrutura do verso preocupa mais do que a poesia a transmitir, e que pereceria a sua razão de ser. Já se vai tornando impossível tratar de poesia lírica, uma vez que a lira anda longe, substituída pelo compasso e esquadro. O verso tem adquirido ares de arquitectura, depois de ter passado por algumas confusões com a oratória. E como é tão célere o mundo, e as coisas naturais vão perecendo, e em breve não seremos mais criaturas humanas, mas coisas de humana aparência, funcionando entre outros maquinismos, falar em assuntos de sentimento já é quase arqueologia, porque não há tempo, não há lugar, não há ouvintes, não há razão de ser. (...)
Resta-nos, pois – a José Bruges e a todos nós, os da poesia sentimental – o trabalho de inventar o nosso mundo, e lá viver. Porque a poesia sentimental não é a poesia sentimentalista. Nós não andamos atrás dessas pequenas coisas dos amáveis sonhos de cada dia. Não, não, nós somos uns ambiciosos de coisas sem existência, pelas quais damos a vida, o corpo, a alma, o tempo, enfim, o que somos. E somos os amantes de uma liberdade que nos arranque a estes enredos da terra. E por ela choramos, e por ela nos convertemos em saudade. E isso é a nossa poesia.
Cecília Meireles, dactiloscrito anexo a carta datada de 12 de junho de 1951, envia da a José Bruges [“Acerca do Desterro – hermenêutica literária e arqueologia cultural” de José Rui Teixeira]

domingo, junho 17, 2018

as três pedrinhas


... virou para mim um olhar interrogativo: que estória é essa das pedrinhas, nunca ouvi falar, disse. Serafim é que conta, defendi-me cauteloso, ouvido do teu avô Frederico que diz ter ensinado a Pedro Trago esse método artesanal de conquistar as pequenas. Segundo ele Pedro já estava desesperado para namorar Dora e então Frederico explicou-lhe que quando um rapaz está interessado numa pequena e deseja saber se ela alinha na sua conversa, vai de manhã cedo à ourela do mar, antes do sol sair, e escolhe três pedrinhas redondas, duas pretas e uma branca. Embrulha-as bem embrulhado num lenço de mão branco e deixa-as um bom bocado debaixo do sovaco, até ficarem com o cheiro do corpo do seu dono. Depois arranja uma oportunidade de maneira a poder atirá-las uma a uma ao regaço da escolhida. Primeiro uma preta, depois a branca e a seguir a outra preta. Se em resposta ela devolver uma pedra preta, paciência, nada feito, quer dizer que não está interessada. Se ficar com elas brincando nas mãos sem devolver nenhuma, quer dizer que está a pensar no assunto, o outro tem é que esperar com calma porque nada está perdido. E se por boa sorte ela logo devolver a branca, não só está a dizer que está interessada como também que o namoro ficou firme desde aquele momento.
Germano Almeida, “A Família Trago”

quinta-feira, abril 26, 2018

Poetas e putas!


Auden afirmou que, se alguém lhe perguntava a profissão, dizia que era professor, sobretudo para não incomodar o interlocutor dizendo-lhe que era poeta. Não há nenhuma outra actividade que obrigue ao disfarce para evitar o incómodo de um desconhecido. Excepto, claro, o de dedicar-se à prostituição. Poetas e putas partilham, portanto, uma condição inicial: a sua maneira de ganhar a vida não é ainda aceite pela sociedade.
José Ángel Cilleruelo, “Cão Celeste” n.º 4